História da Tauromaquia

A história da tauromaquia ou da corrida de toiros remonta a tempos imemoráveis. O homem primitivo não compreendia a razão para que houvesse doze horas de luz e doze horas de obscuridade. Temia sempre que as trevas da noite não permitisse o renascer do dia. Talvez, por essa razão, os antigos persas começaram a adorar a Mithra, deus da luz. Segundo a tradição, Mithra matou o toiro divino, cuja morte era necessária para a renovação do mundo. Do corpo da besta brotaram todas as plantas e animais dos quais dependem o homem. Com o passar dos anos, a cor branca, a luz, chegou a representar o bem e o bom, e o negro, a obscuridade, o mau e o mal, conceitos convencionais que, até aos dias de hoje, são com frequência utilizados em relação ao conflito e à eterna luta entre as forças do bem e do mal. É interessante observar, que a moderna festa dos toiros começa ás cinco ou seis da tarde, quando metade da praça está ao sol e a outra metade à sombra. Além disso, o toureiro leva vestido o chamado traje de luzes, que poderá simbolizar o bom, enquanto o toiro, geralmente negro, simboliza o mau. Para a visão cristã o homem tem, dentro de si, um anjo e uma besta, um cavaleiro e um cavalo, um toureiro e um toiro. Um homem vence-se a si mesmo quando o homem anjo vence o homem besta. No Egipto o toiro e a vaca simbolizavam a fecundidade e a fertilidade da população rural. Em Creta, onde nasceu o mito do Minotauro, um monstro com corpo de homem e cabeça de toiro, os jovens nobres tinham o costume de provar a sua destreza, valor e audácia enfrentando toiros. Desde há muitos anos que o homem tem forte adoração pelo toiro. Veja-se a gruta de Altamira, perto de Santander, onde desenhos de antepassados do actual toiro de lide, e pelas provas efectuadas ao carbono, indicam que aqueles desenhos terão cerca de catorze mil anos. Também na gruta de Lascaux, no sul de França, encontramos representações do antigo Auroch ou Uro, outro possível antecedente do moderno toiro de lide. Na primitiva Ibéria, perto da cidade de Ávila, podemos admirar os famosos toiros de Guisando. São esculturas em granito de tamanho natural. Estão colocadas em fila e que se crê terem um poder mágico para a protecção da espécie. O famoso vaso de Liria, de origem ibera, representa na sua pintura, um jogo com toiros. De possível origem grega é chamada a Bicha de Balazote com corpo de toiro e cabeça humana. Outra vez o toiro está representado como símbolo do da invencibilidade e do poder. Esta crença é evidente no ritual dos chamados taurobolios. Este ritual era efectuado sobre um mithreo, que era uma casa onde, dentro, um homem recebia, a unção de sangue quente de um toiro sacrificado. O homem recebia, através de um funil colocado no orifício, por onde tinha passado e descido, as gotas de sangue pelo nariz, pelas orelhas e pelos lábios, humedecendo a língua e manchando as vestes com o negro sangue do animal. Este homem banhado com o sangue do toiro, dizia-se, nascia para uma nova vida. Diz-se que algumas das primitivas praças de toiros tenham sido construídas sobre mithreos antigos.   Os historiadores assinalam que a morte ritual do toiro era também ocasião de alegria, regozijo e diversão. Haviam corridas de toiros para celebrar os casamentos, devido a que o toiro tinha fama de dar fertilidade ao casal. Antes de se usar a muleta de cor vermelha, empregava-se um lençol branco, provavelmente o do leito nupcial. É possível que isto tivesse o propósito de transmitir ao casal o poder e a fertilidade do toiro no preciso momento da morte do animal.  Com a chegada dos romanos à Ibéria, dois séculos a.C., cresceu o culto ao toiro e ao deus Mithra. Sabe-se que Júlio César era aficionado aos toiros. Durante os seiscentos anos de dominação romana, os romanos construíram muitos anfiteatros, onde tinham lugar combates de gladiadores com animais, incluindo toiros bravos. O anfiteatro de Itálica, perto de Sevilha, é um dos mais famosos. Logo após, durante a ocupação árabe na Península Ibérica, de 711 a 1492, os mouros, talvez influenciados pelos cristãos, fizeram-se aficionados aos toiros. Gostavam particularmente das lutas de cães contra toiros. Mas a evolução dos jogos contra toiros, ou corridas de toiros, é um pouco complexa. No entanto podemos mencionar algumas fases. A primeira é a de caçadores de toiros. A bem conhecida Estela de Clunia, um monólito, mostra um caçador ibero frente a um toiro. A inscrição numa língua pré histórica é NI OIARNARI, qou se traduz como o Caçador de Monte. Há quem diga que Rodrigo Diaz de Vivar, o Cid Campeador, caçava toiros no séc: XI. Esta prática durou até ao séc: XVII, quando o Rei Felipe II começou a praticar nas suas quintas a caça ao toiro com arcabuz. É no final do século onze que se dá notícia da “profissão” de “matador”. O Rei D. Afonso, o Sábio, condena os que recebessem preço por lidar com alguma besta. Em alguns locais esses primeiros profissionais chamavam-se de “matatoiros”. Estes matavam toiros com flechas, lanças, facas e ganchos. Esse espectáculo poderá ter sido a primeira manifestação conhecida das corridas de toiros e dito popular. Devido ás restrições e ás severas leis ditadas pelo Rei contra os “matatoiros”, a luta taurina passou a ser dos gentis-homens, cavaleiros nobres. O Rei D. Afonso aprovava a luta com o toiro a quem quisesse demonstrar seu valor. Os cavaleiros por isso tinham de ferir o toiro a cavalo e não a pé. Durante esta época a actividade taurina era um desporto reservado ao Rei e aos nobres. Este costume durou até ao século dezoito, quando a decadência da nobreza fez menos populares estes espectáculos. De novo apareceram os “matatoiros”, provenientes de classes mais baixas, necessitados de alguns bens para poderem sobreviver e fazendo estes jogos de vida ou de morte, profissionalmente. E é nesta altura que se dá a transição para o profissionalismo e o aparecimento das regras do toureio fundamental, das quais falaremos nas próximas edições.
Falemos ainda do aparecimento do toiro na Península Ibérica. Durante as épocas glaciares e antiglaciares, ao sabor das mudanças de clima na Terra, acabaram por se encontrarem na Península dois grupos de bovinos.
 Um, proveniente do Norte, da Europa asiática, denominado Bojani, o outro proveniente do Sul, de África, o Hahni. O primeiro, o Bojani, terá sido o antecessor dos actuais bovinos das estepes húngaras, da marema italiana e dos barrosões portugueses. O Hahni terá sido aquele que veio dar lugar aos bovinos andaluzes, alentejanos e aos das terras altas da Escócia. No nosso país, a junção ou o cruzamento destas duas raças, a Bojani e a Hahni, resulta num animal arisco, nervoso e agressivo. Em Portugal, a zona de contacto destes dois grupos de bovinos é o vale do Tejo, ou o Ribatejo. Em Espanha o toiro de lide aparece nos vales dos grandes rios mas, em maior numero, junto ao Guadalquivir, ou Andaluzia, e junto ao Tormes na região de Salamanca. Ainda nos dias de hoje são frequentes as transumâncias nestas regiões, hábito adquirido dos tempos do Neolítico, de onde poderão ter decorrido as possíveis misturas de animais provenientes destes dois grandes grupos bovinos. Julga-se, pois, que a origem do gado bravo esteja intimamente ligada ao cruzamento ancestral entre animais do grupo Bonjai com o do Hahni, que as migrações devidas ás glaciações fizeram com que se encontrassem sobre o solo da Península Ibérica e que as migrações internas, devidas ás transumâncias, continuou a manter e a renovar até aos dias em que o homem tomou sobre si a selecção das características desejáveis para o toureio moderno. O toiro deixou de ser um animal bravio para se tornar um animal bravo. Sendo que o homem foi modelando e eliminando alguns defeitos menos úteis e, simultaneamente, ampliando as qualidades natas de agressividade.
Para além do que deixamos antever, na edição anterior, sobre os jogos com toiros, diz-nos a história, que o início do contacto do homem com o toiro em moldes quase modernos, terá sido a montaria. A caça ao veado, ao urso, ao javali e ao toiro eram frequentes e usuais como é referido no Tratado da Montaria de El-Rei D. João I. Também El-Rei D. Duarte, no seu livro Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela, deixa transparecer os cuidados a ter aquando dos ataques dos ursos e dos toiros, uma vez acossados e cansados, para não deixar colher o cavalo do Monteiro. Foi então que o homem buscou os primeiros ensinamentos do comportamento do toiro acossado e aprendeu a maneira e a forma de o burlar, de o enganar, isto é, de o tourear, pondo-o a jeito para melhor o abater. No entanto, é-nos permitido recuar no tempo, para entendermos que, muito antes de Portugal surgir como nação, o historiador romano de nome Estrabão, nascido em 58 a.C., referia-se à Lusitânia dizendo: …”os povos do litoral (da Península) costumam combater a cavalo os toiros que, na Hispânia, têm fúria.” Também os muçulmanos se aficionaram aos toiros. Alguns historiadores maometanos fazem referência a corridas em campo aberto ou em arenas fechadas para matarem os toiros, varando-os de lado a lado com lanças e a cavalo. Será interessante sublinhar que unicamente os muçulmanos invasores da Península, onde permaneceram oito séculos, se afeiçoaram à lide do toiro. Este costume não extravasou para mais nenhum país, território ou civilização muçulmana.
 Em Portugal, devido ás lutas com os sarracenos, pouco tempo poderia restar para se correrem os toiros, porém, há escritos que D. Sancho I costumava alancear toiros em campo aberto e D. Sancho II, seu neto, terá toureado em 1258.
 Quando do casamento de D. Leonor, filha de D. Duarte, com Frederico III da Alemanha, em 1451, realizou-se uma faustosa toirada em Lisboa, numa praça improvisada, junto ao Terreiro do Paço. O próprio Rei D. Sebastião, que terá começado muito jovem a tourear em Sintra e em Lisboa, mandou construir uma praça de toiros em Xabregas, tendo toureado, também, num redondel em Almada. O desditoso monarca toureou pela última vez em Algeciras, em festas organizadas por Filipe II, em sua honra.
Também D. António, Prior do Crato, apreciava lidar toiros tanto no campo como na praça.
Filipe II, para se tornar popular, organizou em 1619, uma corrida de gala por três dias consecutivos. Foram mortos, nesses dias, vinte toiros.
 Depois da Restauração, em 1647, realizaram-se brilhantes corridas na praça de toiros do Rossio. D. João IV, bom aficionado e excelente cavaleiro, enquanto duque de Bragança, mantinha em Vila Viçosa, uma notável academia equestre.
António Galvão de Andrade foi Estribeiro-Mor e Mestre de picadeiro dos príncipes D. Teodósio, D. Afonso e D. Pedro, filhos de D. João IV, e incutiu-lhes a aficion ao toureio. D. Afonso VI toureou nas praças de Sintra, Almada e na do Rossio, em Lisboa. Certo dia, organizou uma tourada com o Conde de Castelo Melhor no pátio do convento de Odivelas.
D. Pedro II, irmão de D. Afonso, toureou a cavalo e pegou toiros à unha. Mandou construir uma nova praça de toiros no Terreiro do Paço, onde se realizou uma corrida por ocasião do seu segundo casamento. Foi D. Pedro que ordenou o corte dos pitons nos toiros, uso que não perdurou, até que cinquenta anos mais tarde foi definitivamente instituído.
É com D. João V que aparecem os arreios de cortesias bordados a prata e ouro com pedras preciosas. Mandou edificar praças de toiros em muitas cidades do reino, especialmente nas províncias da Beira, Estremadura, Alentejo, douro, Minho e Trás-os-Montes.
D. José I foi um grande entusiasta da Tourada, embora o Marquês de Pombal fosse avesso a esse espectáculo.
D. Maria I afastaria o Marquês, que foi desterrado para Pombal, e, quando este morreuo povo deu largas à sua alegria organizando corridas em praças improvisadas na Estrela e no Campo de Santana. Como curiosidade, podemos referir que até as freiras do Mosteiro de Sacavém organizaram um festival taurino.
A retirada de D. João VI para o Brasil, em 1807, e as Invasões Francesas, não permitiram a continuação destas ou de outras festas. O toureio, com o toiro corrido, passou a mero jogo de escondidas.
Não se pode falar com rigor da evolução do toiro bravo se não se falar, simultaneamente, da evolução ou nas novas maneiras de tourear. O toiro é um dos três pilares da Festa (o Toureiro e o público são os outros) que permitiu a sobrevivência desta, através de mudanças continuadas. Evoluir para se moldar ás éticas e estéticas de cada sociedade, século após século. Isto não seria possível sem a mão do homem. Nada no toureio surge por acaso e muito menos o toiro e a sua selecção. Só, desde esta, se foi aperfeiçoando evolutivamente o toiro bravo, para se adequar ás novas formas de interpretar o toureio que pedia o público. Neste sentido, foi o ganadeiro, uma peça fundamental nesta evolução. Rigorosamente não se pode falar de encastes mas sim de ganadarias de “fundação”. Ganadeiros que foram seleccionando uma primeira investida até a converterem em bravura susceptível de ser toureada e lidada em cada tempo. A arte de lidar toiros, ou a forma de tourear segue o fio que teceram os toureiros heterodoxos. Os que souberam sair da “norma”, ainda que a custo de sofrer o ataque de quem se prendia ao estabelecido, abriram portas de saída a uma arte que, sem eles, não teria evolucionado. Sem eles o toureio teria desaparecido, pois evolucionar é a arte da manutenção. Desde que o toureio se profissionaliza começam a formar-se núcleos de escolas, quase sempre em redor dos matadouros municipais. Aí surgem os toureiros nos séculos XVII e XVIII e de entre esses, alguns ousaram sair das regras. Um de eles foi Curro Cúchares, que partiu da norma para sair dela, enquanto que seu competidor, El Chiclanero, pronunciava o catecismo. Cuchares ensina a todos, o engano, a muleta e começa a dar passes primitivamente, deixando de ser a escrava da espada. A crítica de então atacou-o, mas o toureio passou a denominar-se como “ A arte de Cuchares" Era Curro Cuchares um toureiro apelidado de “trucador” (fazedor de truques) por dar passes de muleta num tempo no qual, depois do tércio de varas e o de bandarilhas, se entrava a matar. Mas houve outros toureiros que avançaram na lide a custo de serem apelidados de "ratilles" (ratinhos, espertos). Ao lado de eles sempre viveu o diestro que seguia nos cânones estabelecidos. Por exemplo, frente a Frascuelo, Lagartijo (elegante, diferente) frente a El Espartero, Guerrita. Antes de Guerrita, havia apontado novos ares e formas Montes, mas é Rafael Guerra Bejarano, perfilando-se para lancear e ganhar passos para ligar, quem avança no toureio. A norma falece (Espartero) e ganha Guerrita, quem chegou a dizer que, depois de ele, "ninguém" e logo... Fuentes. Queria ele dizer que os seus contemporâneos não tinham entendido o novo toureio. Para mudar o toureio necessita-se um novo toiro que supere a sua forma de se erguer depois do tércio de varas. Surgem novos ganadeiros e o toiro começa a mover-se para permitir uma lide de muleta, ainda que breve, mas mais vistosa. Neste sentido Vistahermosa ganha o desafio a Verágua enquanto que ao resto dos ganadeiros, com procedências ainda mais antigas, parou-se-lhes o relógio e passou-se-lhes o tempo. Existiram os Guerrita, Gallito, Belmonte, Manolete... e se existiram foi, entre outras coisas, porque ganadeiros como os duques de Veragua, Vistahermosa, o marquês de Saltillo, o conde de Santa Coloma, Contreras, Atanásio, Mora Figueroa, Conde de la Corte, Juan Pedro Domecq... criaram e seleccionaram um toiro apto para sus formas de tourear. As formas que pedia o público. Nesta evolução só o aceitado permaneceu. Por isso sangues antigos como o de Jijona, e o de Navarra, os toiros "da Terra"... deixaram de interessar à festa, quer dizer, ao público, e os ganadeiros abandonaram-nos. O que permaneceu, o sangue Vistahermosa nas suas mil e uma particularidades, não o foi por sucessão de modas ou imposições, mas sim porque com ele os ganadeiros puderam seleccionar o toiro bravo evolutivo. Tão grande foi esta fonte que Vistahermosa foi o tronco a que se ligaram outros sangues para subsistir. Ele foi seu passaporte para o futuro. A evolução do toureio nega a ortodoxia e nega o dogma. Ainda que um erro histórico possa considerar inalteráveis conceitos, o conceito de bravura e as formas de tourear variaram e pouco têm que ver hoje com as de há cem anos.Duas madeixas se perfilam de forma conjunta sempre em uníssono: a do toiro e a do toureio. Aperfeiçoa-se na bravura e aperfeiçoa-se o toureio. O critério mais razoável para analisar a história do toiro na sua evolução é unir as formas de tourear (o toureiro), aos toiros que permitam esses modos (o ganadeiro).Desde uma lide balbuciante com um toiro de bravura balbuciante até a complexidade actual do espectáculo, a evolução toiro-toureio pode-se esquematizar nas seguintes fases: Toiro Disperso, Toiro Reunido e Toiro Bravo. . António Reverte, Rafael Gómez El Gallo e outros toureiros que viveram entre finais do século XIX e princípios do XX, aportaram algo que também saía da norma (a personalidade, o génio) mas a parelha que muda o toureio é a formada por Gallito (José Gómez, conhecido como Joselito e El Gallo) e Juan Belmonte. É Juan um toureiro que é negado pelo físico e que, longe do despretensioso, começa a tourear mais sobre os braços que sobre as pernas com risco de contínuos tropeços infligidos pelos toros. Gallito é mais largo, inteligente, poderoso, mas bebe na fonte que lhe traz Belmonte. Gallito lê o futuro da festa, manda no toureio e entra nas ganadarias para buscar o toiro que permita uma lide mais duradoira, distinta. É dos poucos que não apelida de louco a Belmonte. Nesta ocasião o toureiro cartesiano (Gallito) se fixa no iconoclasta (Belmonte). Juan aponta e Joselito muda o campo e auspicia inclusive a construção de grandes praças de toiros (Monumentais) para o futuro do espectáculo.

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